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 Sobreviver: coisa de mulher

Ana Júlia Oliveira, Camila Hucs e Giovanna Moreira

O retrato da violência doméstica na quarentena

"No início, vivi muita violência psicológica e muita humilhação "

O patriarcado é parte da vida das mulheres há milhares de anos e faz com que homens adultos detenham poder, autoridade e privilégios sobre os seus corpos. Os hábitos e culturas machistas reforçam mais ainda esses comportamentos, fazendo assim com que o gênero feminino pareça ser submisso ao masculino. Os meninos criados em ambientes patriarcais podem se tornar homens machistas e, muitas vezes, violentos. 

      

As meninas que crescem nesse círculo são objetificadas e frequentemente vivem relacionamentos abusivos, onde tem seu emocional e psicológico ignorado e seus corpos constantemente violentados. Ali, entre quatro paredes, a mulher é obrigada a viver 24 horas com seu agressor e acaba sendo enxergada apenas como mais um utensílio doméstico. 

 

Esse era o caso vivenciado pela advogada Marilha Boldt, que sentiu na pele o que é estar em um relacionamento abusivo. A advogada e fundadora da página do Facebook e Instagram ‘Superação da Violência Doméstica’, conta que seu namorado a insultava diariamente. Além de atuar nas redes sociais, é conselheira do CODIM (Coordenadoria de Políticas e Direitos das Mulheres) de Niterói e usa o que sofreu para ajudar outras vítimas. 

 

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Marilha comenta que as brigas eram por motivos pequenos e quanto mais ela pedia que ele mudasse, mais ele ficava agressivo. Em um dia, voltando da faculdade,  a advogada recebeu uma mensagem do seu até então marido, dizendo que não poderia voltar para casa. Ela estava sem as chaves, pois ele as escondeu para que pensasse que tivesse perdido. 

 

Quando percebeu o que estava acontecendo, foi a delegacia prestar queixa. Lá o inspetor não forneceu ajuda, pois alegou que “era briga de marido e mulher” e que daqui a pouco voltaria para ele. Além disso, falou que era necessária uma ordem judicial para retirar os seus pertences da casa, o que mais tarde Marilha descobriu ser mentira. 

 

 

 

 

 

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Ilustração: Ana Júlia Oliveira

Nesse dia, só com a roupa do corpo, não tinha onde dormir. Abrigou-se com uma amiga da faculdade e ficou três dias só com uma muda de roupa. “No início, vivi muita violência psicológica e muita humilhação” A profissional ainda conta que foi um processo muito dolorido e que se sentia sozinha. 

 

Por isso, Marilha, que também coordena o Grupo de Trabalho de Violência Doméstica da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), busca dar apoio moral e auxiliar judicialmente as mulheres que procuram sua página. Ela aconselha que, em momentos de briga, a vítima se afaste de cômodos com objetos que possam ser usados como armas. A cozinha, por exemplo, é considerado uma zona de risco, devido a acessibilidade a armas brancas, como facas. Essa dica ajuda a evitar casos de agressões mais graves que podem levar ao feminicídio.

À medida que o confinamento foi sendo adotado como forma de conter a pandemia do COVID-19, os casos de violência doméstica dispararam. Em São Paulo, onde surgiram os primeiros casos do Novo Coronavírus no Brasil, houve um aumento de 30% das denúncias durante o mês de Março, segundo o Núcleo de Gênero e o Centro de Apoio Operacional Criminal (CAOCrim). No Rio de Janeiro, o Plantão da Justiça Estadual registrou que esse número chegou a 50% após a primeira semana do isolamento.

 

Apesar dos dados apontarem crescimento dos casos, eles não refletem totalmente a realidade do país, pois muitas vítimas têm dificuldades em registrar as denúncias na quarentena devido às falhas medidas de apoio dos governos.

Movimentos de solidariedade e de ajuda em redes sociais contra violência  também tomaram espaço durante a quarentena. Em plataformas como o Twitter, usuários têm aberto sua caixa de mensagens e se ofereceram para denunciar os casos de agressão. 

 

Marilha, que é criadora e administra perfis de apoio à vítimas em redes sociais, conta que durante o confinamento as mensagens têm sido mais frequentes. “Pelo o que eu tenho percebido pela minha própria página, os casos são mais dramáticos, com agressões e ameaças aumentadas e mais recorrentes”. Em meio a este período de conflitos, a tensão do isolamento reafirma o agravamento da violência.

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No caso de mulheres periféricas e com dificuldade de recorrer a ajuda, a OAB Mulher recomenda que essas vítimas conversem com seus vizinhos e combinem códigos de alerta. Como, por exemplo, estender uma toalha vermelha na janela para que saibam da violência e possam oferecer ajuda ou denunciar. Além disso, há a preocupação com quem não possui recursos para se locomover até uma delegacia. 

Infográfico: Ana Júlia Oliveira

Como consequência, no Brasil, o acesso à ajuda tradicional é dificultado. “Eu ainda acho que o judiciário e a delegacia não conseguem computar a gravidade dos casos ocorridos. Existe uma subnotificação, uma dificuldade nos registros e a maioria é cancelado por falta de detalhes”, comentou a advogada.

Infográfico: Ana Júlia Oliveira

A preocupação da subnotificação assusta órgãos nacionais e internacionais. No Brasil, o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, reforçou a divulgação dos canais de comunicação, como o Disque 100 e 180. No entanto, o ministério ao ser questionado sobre a superficialidade das medidas preferiu não se pronunciar. 

Devido ao sistema restrito, as mulheres podem fazer o registro da denúncia online, sem precisar recorrer à ligação. Essa medida foi recomendada pela ONU, já que essa pode ser uma alternativa mais segura para procurarem apoio durante o confinamento. Junto com esse alerta, o Órgão Mundial também sugeriu maiores investimentos em organizações da sociedade civil e campanhas de conscientização pública.

No Rio de Janeiro, as viaturas da patrulha Maria da Penha, mesmo com o confinamento, circulam 24 horas atendendo denúncias e fiscalizando o cumprimento das medidas protetivas. Lúcia Iloízio, promotora de justiça do Ministério Público do Rio de Janeiro, indica que as discussões acaloradas tendem a tomar maior dimensão em espaços reduzidos e, por isso, explicita que a Polícia Militar (190) também pode ser contactada em casos de violência doméstica ou familiar contra a mulher.

Conforme alega Lúcia, que também é coordenadora do Centro de Apoio Operacional, das Promotorias de Justiça que Combate a Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, o sistema de Justiça continua funcionando em prol das mulheres. “Não é necessário sofrer sozinha. É possivel, sim, receber ajuda e o apoio das instituições durante a pandemia”, afirmou. 

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Mulheres em meio ao confinamento

O confinamento piora a situação das mulheres que já viviam em situação de violência, de acordo com a especialista em violência doméstica e doutoranda na UFRJ, Drica Madeira. “A quarentena acaba com o convívio extra familiar e sobrepõe o convívio intra familiar’, ela explica que a situação traz uma possibilidade à mulher de não querer estar ali. Por isso, as vítimas tendem a se distanciar cada vez mais, agravando os casos. “Dificulta o entrosamento dela com aquilo que seria a sociedade como um todo”, acrescentou Drica. 

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Ela explicou também que a cultura machista tipifica o homem como o dono do mundo e as outras pessoas vivem à mercê dele. “As mulheres estão expostas a qualquer tipo de violência vinda do sujeito criado nessa estrutura patriarcal e machista”, completou. “Estar ali o tempo inteiro reforça essa relação de subjugamento”.

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Segundo pesquisa desenvolvida pelo Instituto de Estudos Brasileiros, as mulheres são maioria no trabalho informal, as tornando assim mais dependentes de seus agressores nesse período. Além disso, a alta do desemprego também intensifica as tensões, visto que o homem na cultura machista e patriarcal tem a expectativa de ser o provedor da casa. Isso tudo se intensifica pelo uso de drogas e o aumento no consumo de álcool, que segundo a especialista, Drica Madeira, pode trazer um descompasso na relação. 

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Durante a quarentena, a venda de bebidas alcoólicas em supermercados aumentou. Na rede Guanabara, houve um crescimento de 20% nas vendas durante as duas últimas semanas de Março nas 26 lojas da rede no Rio de Janeiro. Esse número ultrapassou períodos que normalmente são de pico, como o Carnaval. O novo hábito preocupou a Organização de Saúde (OMS), que alerta sobre o excesso do consumo e orienta a redução na venda.

A terapeuta comportamental, Leila Gilaberte, aponta que fatores como estresse, medo, insegurança e ansiedade, presentes na quarentena, estimulam e levam ao abuso de álcool. “A convivência restrita em casa provoca maiores chances de abuso”, explicou. Já a especialista em violência doméstica, Drica Madeira, avalia que o abuso de álcool é um ponto tensor em uma relação já violenta. “Na quarentena surge uma junção entre essas tensões, a falta de rede de apoio e o estar perto a todo momento”.

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Marilha também fala sobre a importância da rede de apoio, além de acompanhamento psicológico.  “Senti muita falta de ter um apoio, alguém falando como fazer, o que fazer, onde procurar ajuda e hoje eu estou totalmente envolvida nisso”, conta. 

O CEAM, Centro Especializado de Atendimento à Mulher da Prefeitura do Rio, tem trabalhado em plantão, mesmo que por atendimento telefônico, como apoio para mulheres que já viviam em situação de violação e para novos casos urgentes. O auxílio está sendo concedido apenas em circunstâncias extremas, como lesão corporal, ameaça de morte, estupro e tentativa de homicídio.

Luciana Vidal, assistente social da CEAM e porta-voz da instituição, trabalha com o encaminhamento de vítimas para o abrigo sigiloso Cora Coralina. Ela conta que, com a quarentena, as acolhidas precisam ficar 14 dias em isolamento até que se certifiquem que não há riscos de contaminação e após esse período se juntam às demais. “Independentemente do Coronavírus, elas têm saídas para o atendimento de saúde e judiciário, são sempre acompanhadas pelos funcionários da casa” comentou Luciana.

 

Por isso, para evitar que a situação chegue ao ponto de precisar afastar a vítima da sociedade, em briga de marido e mulher, se mete sim a colher. Quem não está em situação de risco deve ficar sempre atento ao redor, para poder auxiliar e resgatar pessoas desse tipo de relacionamento.

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Sancionada em 2006 tem como objetivo proteger a mulher da violência doméstica. Foi nomeada assim pois marca a luta da farmacêutica, Maria da Penha Maia Fernandes para condenar o  seu agressor.  Em 1983 foi vítima de duas tentativas de feminicídio por parte de seu marido. Primeiro deu um tiro em suas costas enquanto ela dormia, apesar de ter escapado da morte, ele a deixou paraplégica, e depois tentou eletrocutá-la durante o banho. Outra violência sofrida por ela veio por parte do Poder Judiciário, que demorou para iniciar o processo contra o agressor.

 

 Mesmo com a omissão do Estado brasileiro e estando fragilizada, Maria continuou lutando por justiça e em 2002 foi formado um consórcio de ONGs Feministas para elaborarem uma lei de combate à violência contra a mulher. Depois de muitos debates o projeto de lei da câmara dos deputados foi para o senado e aprovado com unanimidade em ambas as casa. E assim, em 7 de agosto de 2006 o então Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sancionou a lei número 11.340 e a batizou com o nome de Maria da Penha como forma de reconhecimento pela sua luta.

LEI MARIA DA PENHA
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O caso de Marilha e o de Maria da Penha, que dá nome a lei criada em 2006 para coibir atos de violência doméstica contra a mulher, representam o que milhares de mulheres são submetidas em todo Brasil, e ressaltam a importância de lutar contra a violência doméstica. Nessa realidade, é sempre necessário reforçar a célebre frase dita por Maria da Penha:

 

 

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"Coisa de mulher é sobreviver e contar, para salvar outras mulheres"

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